A família e o profissional, uma relação especial

Maria Lúcia Sica Cortez

Assistente Social

Mina Regen

Assistente Social 

Agosto/96

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Família: Conceito e formação

O nascimento de uma criança diferente, mas não desigual

Processo de compreensão, adaptação e aceitação

Profissionais: Parceiros ou juízes?

 

FAMÍLIA: CONCEITO E FORMAÇÃO.

 

Para Ackerman, a “família é a unidade básica de desenvolvimento e experiência, realização e fracasso, saúde e enfermidade”.

É o 1º grupo a que pertence um indivíduo e onde ele tem a oportunidade de aprender através de experiências positivas (afeto, estímulo, apoio, respeito, sentir-se útil) e negativas (frustrações, limites, tristezas, perdas), todas elas fatores de grande importância para a formação de sua personalidade.

A família é a 1ª integradora e o amor, compreensão, confiança, estímulo e comunicação que permeiam a relação, são formas de proteção que utiliza para facilitar o processo de integração e participação do indivíduo nos diferentes grupos sociais da comunidade/sociedade.

Segundo Buscaglia “o papel da família estável é oferecer um campo de treinamento seguro, onde as crianças possam aprender a ser humanas, a amar, a formar sua personalidade única, a desenvolver sua auto-imagem, e a relacionar-se com a sociedade mais ampla e mutável, da qual e para a qual nascem”.

Trata-se de um sistema bastante complexo já que:

  • cada família é única, ou seja, difere em tamanho, elementos que a compõem, possui valores próprios, etc.

  • é um sistema altamente interativo, em que qualquer ocorrência com um dos elementos, afeta todo o grupo; por exemplo: desemprego do pai, drogadição de um dos filhos, promoção da genitora no emprego, casamento de uma filha, etc.

  • passa por vários estágios de desenvolvimento - assim como o indivíduo, também a família se forma e à medida que vai passando por várias fases, precisa enfrentar as mudanças a fim de se ajustar às novas situações; exemplo: a entrada de cada filho na relação exige uma reorganização de dinâmica, a entrada dos filhos na escola, na puberdade, no trabalho, etc.

  • está inserida numa unidade social maior, ou seja, a sociedade e qualquer ocorrência nesta, pode ter repercussões na família como, por exemplo, uma recessão econômica, uma guerra, etc

Cada elemento de uma família tem um papel a desempenhar - marido / esposa, de pai, mãe, filho(a), irmão(ã), e assim por diante.

Este sistema de relações é que deve possibilitar o desenvolvimento de cada um dos membros da família. Não existe “escola” para o treinamento destes papéis e as primeiras vivências de um casal que decide se unir de forma legal ou não, são muito influenciadas tanto por características pessoais de cada um (ritmo, temperamento, afetividade) quanto pelas de suas famílias de origem (hábitos, costumes, valores, tipo de relação entre seus membros).

Segundo Sprovieri, “a chegada de um novo elemento no grupo familiar exige da família um deslocamento de afeição”. Assim a passagem do vínculo a dois para o vínculo a três, frente a uma gravidez, faz com que o casal retome às suas fantasias infantis; quando pequeninos brincavam com seus “filhos imaginários” e, na maior parte das vezes, perfeitos, ou seja, dentro dos padrões da nossa sociedade, extremamente perfeccionista.

Durante a gestação, os pais já amam “algo” idealizado, sonham e fazem projetos de vida para os filhos de acordo com os seus próprios conteúdos emocionais e desejos - o filho deverá realizar aquilo em que eles “falharam”.

A família precisa de um tempo, que é diferente para cada um de seus elementos, para se adaptar a seus novos papéis

 

 O NASCIMENTO DE UMA CRIANÇA DIFERENTE, MAS NÃO DESIGUAL.

 

“Dar à luz uma criança deficiente é um acontecimento repentino. Não há um aviso prévio, não há tempo para se preparar”. (Léo Buscaglia)

Quando ao nascimento a criança apresenta algum tipo de problema, cada um dos elementos da família reagirá de forma diferente, havendo na maioria das vezes, uma alteração no desempenho de papéis; isto porque além de aprender, por exemplo, a ser pai/mãe, terá que aprender a ser pai/mãe de uma criança diferente. De um momento para o outro deverão conviver com uma criança que não esperavam, estabelecer uma relação que não desejavam e que lhes afigura muito difícil. Como amá-la? Há um sentimento de perda muito grande, perda do filho sadio, idealizado; perda do filho sonhado, perda do sonho...

É importante que os pais possam viver o choro, a tristeza, o período de luto por este filho idealizado, sem que se lhes seja tirada a esperança, que é o que os impulsiona, que é o seu sustento e sem que percam a credibilidade em si mesmos e no próprio filho... Também é importante que eles consigam se tornar “pais especiais” e não “pais deficientes”, já que terão os seus sentimentos e suas posturas constantemente colocados à prova, tanto entre eles como com os profissionais e o mundo que os cerca.

A decepção frente ao nascimento do bebê será maior ou menor em função de:

  • aceitação ou não da gestação - caso ela tenha sido rejeitada, a notícia de que o bebê é portador de alguma deficiência poderá provocar reações mais acentuadas, pois envolverão sentimentos de culpa;

  • tipo de personalidade de cada um dos cônjuges - pessoas mais retraídas, choram e fecham-se em sua tristeza e dor, isolando-se; já outras, tendem a gritar, esbravejar, culpar e agredir terceiros;

  • relacionamento do casal anterior ao nascimento - se este já não estava harmônico, o nascimento da criança com deficiência pode provocar o rompimento, funcionando esta como “bode expiatório”;

  • nível de expectativa - quanto maior o nível sócio - cultural dos pais, maior a expectativa em relação a criança e seu futuro e tanto maior a decepção;

  • grau de preconceito em relação aos portadores de deficiência - quando o casal já apresentava rejeição a essa população, maior será a dificuldade em relação a esse filho;

  • posição do filho na prole - em geral, o nascimento do 1º filho gera grande expectativa - daí, a dificuldade maior quando este filho é portador de deficiência; também ocorre o medo frente a futuras gestações;

  • tipo de relacionamento com a família estendida - quando não existe uma boa relação dos cônjuges com as famílias de origem, o nascimento de uma criança com deficiência pode provocar falatórios, acusações e até rompimentos.

“   A realidade é que o problema foi trazido para a família pela criança deficiente e, portanto é normal que a família sinta um certo ressentimento pela deficiência, mas é também verdade que a criança portadora de deficiência é apenas mais um membro da família e, é antes de tudo uma criança... caso essa diferenciação não seja feita, o ressentimento que a família sente em relação a deficiência pode inconscientemente transformar-se em rejeição pela criança” conforme diz Buscaglia.

    PROCESSO DE COMPREENSÃO, ADAPTAÇÃO E ACEITAÇÃO.

“O momento do nascimento transforma se rapidamente de euforia em stress agudo e angústia” Buscaglia

Várias são as fases pelas quais os pais passam e reações que apresentam neste processo de compreensão/adaptação/aceitação desse filho diferente.

É importante ressaltar que essas fases não acontecem de forma seqüencial e estática e que nem todos os pais passam necessariamente por todas elas. Podemos encontrar famílias com os filhos em idade adulta e ainda vivendo os sentimentos predominantes no momento do nascimento.

Relacionaremos no quadro a seguir as fases, reações mais comuns dos pais em cada uma delas, bem como a postura desejável dos profissionais frente a elas, segundo Mary Ann Newcomb:

 

FASES - PAIS

REAÇÕES - PAIS

POSTURA DESEJÁVEL DOS PROFISSIONAIS

Necessidade de apoio
  • logo após a notícia

  • choque frente ao inesperado, ao desconhecido, ao futuro imprevisível.

Buscam um culpado; choro, raiva e negação.

Dificuldade de interagir com o bebê.

Fecham-se em sua dor, negam-se a contatos.
Disponibilidade para ouvi-los; atenção voltada para a família evitando julgar e criticar, procurando criar um canal empático de comunicação.
Percepção da criança
  • os pais começam a perceber as necessidades dos filhos e a perder o medo de serem inadequados.

Buscam  auxílio e informações.
  • Tentam estabelecer novos contatos - outros pais, “velhas amizades”.
  • Decréscimo do “isolamento social”.
Oferecer orientações e informações: auxiliar na identificação e compreensão das necessidades desse filho. Envolvê-los afetivamente: relação como seres humanos.
Conhecimento mútuo
  • maior contato possibilita visão mais realista da criança.
  • Pais e filhos aprendendo a se conhecer, começam a criar vínculos.
  • Pais vão percebendo a evolução do filho, tornando-se mais participantes.
  • Já buscam apoio, esclarecimento e sugestões.
  • Em geral são superprotetores.
Oferecer modelos, envolver os pais em programas, palestras, sem exigir mais do que tenham condições de dar.
  • Dúvidas quanto à evolução do filho.
  • Sentimentos de urgência e ambivalência em relação ao atendimento - preocupação com o seu futuro.
  • Aprendem a fazer críticas e são mais questionadores.
  • Alguns voltam a se preocupar consigo - criança pode não ser mais o centro do mundo.
  • Outros se envolvem com o programa e com outros pais.

 

  • Auxiliá-los em suas escolhas frente às diferentes alternativas.
  • Procurar desenvolver um trabalho de parceria - “descobrir” com eles, que o fato de terem um filho com uma deficiência não lhes tira o direito de sorrir, de reclamar, de chorar, de serem humanos.

 

  • Pais como modelo e facilitadores junto a pais de outras crianças.
  • Pais ensinando espontaneamente e fazendo adaptações criativas.
  • Recorrem a recursos da comunidade.
  • Alguns já reconhecem que tristeza e frustrações são sentimentos normais e são capazes de expressar alegria com as conquistas do filho.  Compartilhar, trocar vivências e ensinar outros pais.
  • Oferecer modelos, auxiliá-los a se valorizarem como pessoas.
  • Facilitar relação mais próxima com seus filhos - falar de seus sentimentos.

Em nossa experiência, trata-se de um longo processo e a compreensão não implica em aceitação, pois esta última está muito mais ligada a aspectos emocionais.

Solange Ferreira da Silva, estabelece diferença entre o aceitar e o assumir. Para ela aceitar “implica em que a pessoa que aceita não se sinta mais infeliz, diminuída ou diferente por possuir uma criança deficiente”; e assumir “implica em que a pessoa que assume tome providências, inclusive participando delas, a fim de que aquilo que for necessário fazer para abordar o problema da criança seja feito. Assumir não implica na concomitante aceitação parcial ou completa do problema e/ou da criança.

Àquela dor que fica guardada e que em períodos marcantes aflora, aumentando a ansiedade dos pais - alfabetização, entrada na puberdade, interdição, envelhecimento e outros, Okshansky (1962) denomina de “tristeza crônica”.

Daí a importância de se trabalhar com Grupos de Pais para que não percam sua identidade como pessoas em primeiro lugar, pais em segundo e pais de uma pessoa portadora de deficiência em terceiro lugar.

“Quando se recebe a notícia de que seu filho nasceu com alguma imperfeição, angústia, amor, compaixão, medo e infelicidade brotam e brigam em seu íntimo”.(depoimento de um pai)

 

PROFISSIONAIS: PARCEIROS OU JUÍZES?

 

Não há uma receita para se dizer aos pais que seu filho é portador de uma deficiência. Na verdade, ninguém está preparado para receber uma notícia “ruim”, assim como dificilmente alguém se prepara para dar esta mesma notícia.

O que se tem visto em relação a atitude dos profissionais é um despreparo tanto técnico como emocional com relação a abordagem do diagnóstico. È muito importante levar-se em conta que o profissional é um ser humano, com seus medos, com suas inseguranças, “nunca me ensinaram a forma correta de transmitir essa notícia aos pais... A sensação de impotência e frustração que sinto... Procuro não demonstrar minhas emoções, coloco uma máscara embotada, sem ressonância afetiva..(1990, depoimento de um médico)

De maneira resumida relacionaremos aqui, algumas atitudes de profissionais no momento de informar aos pais sobre a patologia da qual seu filho é portador:

  • omissão ou transferência - por desconhecimento do problema ou por não conseguir, não ter coragem de lidar com a situação.

  • forma destrutiva - informa que nada se deve esperar daquela criança, vai ter morte precoce, não vai andar etc. Fala-se de incapacidades, de deficiências e não de possibilidades.

  • forma minimizada - prometendo um futuro fantasioso, não consegue ser continente da angústia vivenciada pelos pais neste momento. Tenta “poupar” os pais e a si mesmo.

  • referência impessoal - não tem ou não consegue ter um envolvimento afetivo, dando a impressão de desinteresse. Não fornece explicações sobre o problema, não encaminha para orientação e atendimento adequado. Procura não entrar em contato com o sofrimento da família.

  • transmissão da notícia somente a um dos cônjuges, sobrecarregando um dos elementos do casal, impossibilitando o compartilhar dos sentimentos, o apoio mútuo.

Segundo pesquisa desenvolvida em 83/84, pelo Projeto Momento da Notícia da APAE -SP, foi sugerido pelos pais que a notícia, fosse dada na presença da criança, tocando-a de forma afetiva, antes da alta hospitalar, numa atitude construtiva destacando os aspectos positivos e não só negativos, mostrando aos pais o que podem fazer para auxiliar o filho. Muitas atitudes afetuosas com a criança são lembradas como confortadoras pelos pais.

Buscaglia em seu livro “Os deficientes e seus pais - um desafio ao aconselhamento” cita estudo feito em 1977, por Dembinski e Mauser, com 234 casais, onde os pais fazem algumas recomendações aos médicos, entre elas: usar uma linguagem clara; oferecer uma atmosfera aberta e informal que permita aos pais sentirem-se livres para fazer perguntas, etc.

Segundo Gabriela Mader, existem situações que geram conflitos sutis ou abertos entre pais e profissionais.

Por exemplo, no que diz respeito a motivação, os pais são obrigados a se confrontarem com a deficiência enquanto que os profissionais optam por fazê-lo. Enquanto os pais se sentem socialmente desvalorizados, os profissionais recebem uma valorização acima do normal, sendo tratados como “heróis” por trabalharem nessa área.

No que diz respeito a diferença de experiências, os pais se sentem inseguros e incapazes, dependendo dos profissionais sobre formas de ajudar seu filho; os profissionais se sentem como os únicos com competência para orientar os pais e assumem o papel de autoridade absoluta, não passível de crítica. Os pais têm sentimentos de culpa quando não seguem as recomendações e os profissionais, sentindo a desconfiança dos pais, neles colocam o estigma de “pais difíceis”, produzindo sentimentos de culpa, além dos já existentes.

É importante que se estabeleça uma relação de confiança mútua e de parceria entre pais e profissionais, pois aqueles, embora leigos, convivem por muito mais tempo com a criança e podem trazer dados importantes para o bom desenvolvimento do trabalho técnico.

Para que os profissionais possam aprender a lidar de forma saudável com esta situação, que também lhes é extremamente difícil é fundamental que estejam sempre se atualizando e desenvolvam um trabalho interno sistemático de auto-conhecimento que facilite a percepção de suas inclinações e aversões, seus temores e desejos para que possam tem uma visão mais clara, mais realista das circunstâncias e o que elas envolvem - atitudes, sentimentos etc.

Mina Regen, referindo Rogers, ressalta que existem alguns atributos pessoais que, além da formação profissional específica, devem estar presentes em indivíduos que se interessem em atuar junto a famílias onde haja um portador de deficiência. Seriam eles:     capacidade de dialogar, mantendo uma relação horizontal que permita um trabalho de parceria;*     empatia - possibilidade de se colocar no lugar do outro, de sentir a situação como ele sente;

  • concepção positiva do homem - acreditar que o ser humano é capaz de, entre erros e acertos, crescer como pessoa;

  • maturidade emocional - reconhecimento de seus próprios desejos e de conter seus impulsos, não projetando-os no outro;

  • motivação interna - acreditar em “algo” que reconhece como um valor e que o leva à ação.

 

 “...quando vocês pensam que já sabem tudo sobre algo, procurem olhar sempre as coisas de outras maneiras...” ( Filme Sociedade dos Poetas Mortos - Tom Shulman)