projeto textos
"Parece evidente que as empresas que servem
ativamente seus muitos elementos constituintes de maneira criativa e moralmente
solícita, a longo prazo, servem melhor seus acionistas. As empresas, na
verdade, vão bem quando são boas." "Algum de vocês sabe quem foi Diego
Rivera?", pergunta a coordenadora de um centro de educação para crianças
e adolescentes em Americanópolis, um dos bairros mais pobres e violentos de São
Paulo. A pequena Poliana, de 10 anos, levanta o braço em meio a uma porção de
garotos e meninas de sua idade. Lá estão Rodrigo, Íris, Felipe, Carlos, Joab.
"Eu sei. É aquele pintor que desenha um monte de gente junta. Conhecemos
os quadros dele aqui." Poliana mora numa região infestada de traficantes
de drogas e outros marginais, um lugar onde não há parques, bibliotecas ou
museus. Sempre estudou em escolas públicas, com pouquíssimos recursos. Mesmo
assim, ela e as outras 630 crianças e adolescentes do Centro Educacional São
João Batista sabem quem foi o mexicano Diego Rivera e fazem desenhos inspirados
em Monet, Tarsila do Amaral e Kandinsky. As quatro educadoras da entidade dão
aulas de português apoiadas nas obras de Monteiro Lobato. Nunca haviam sido
professoras antes. E nunca haviam ensinado arte ou visto o Abopuru, de Tarsila,
ou o Auto-Retrato, de Marc Chagall, antes de participar de um programa de
capacitação de educadores leigos. São educadores como esses que levam as 80
crianças entre 4 meses e 4 anos da creche Meu Abacateiro, localizada no meio de
uma favela na Zona Sul de São Paulo, a exposições no Masp e no Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo. O programa Capacitar atende a 100
entidades que reúnem 30 000 crianças e adolescentes de São Paulo. Não está
ligado a nenhum governo. O dinheiro investido na formação desses educadores
vem de uma empresa cujo foco há mais de um século é vender roupas a famílias
e - principalmente - para jovens da classe média. A educação de crianças como Poliana, Rodrigo, Íris
e Felipe e o apoio às comunidades fazem parte da missão e da visão estratégica
da C&A, uma das maiores redes de varejo de roupas do mundo. Assim como fazem
parte dessa estratégia ações como um programa de voluntariado que reúne
quase 1 000 dos cerca de 7 000 funcionários da empresa no Brasil, um código de
conduta que proíbe o trabalho infantil entre os fornecedores, e autonomia para
que os funcionários decidam, por exemplo, como administrar da melhor maneira o
orçamento para refeições. É esse tipo de postura que hoje faz da C&A um
dos maiores exemplos de responsabilidade social no país. E de como só é possível
chegar a esse ponto se crenças e valores corporativos forem mais do que um pedaço
de papel colocado na parede da sala do presidente. Na C&A, parte dessa visão de integração com
a comunidade foi herdada dos fundadores da empresa. Há mais de 160 anos, os irmãos
Clemens e August (o C e o A do logotipo) Brenninkmeyer começaram a vender
roupas de porta em porta na cidade holandesa de Sneek. Em 1841, a primeira loja
C&A foi aberta. Os Brenninkmeyer, ex-fazendeiros católicos, queriam antes
de mais nada fazer fortuna com esse tipo de negócio. A partir daí passaram a
financiar projetos comunitários, principalmente os ligados à Igreja. Apoiar a
comunidade é um dos princípios da cultura da empresa. Nesses 158 anos, a
C&A cresceu silenciosamente, chegando a cerca de 700 lojas espalhadas pelo
mundo. Sua organização é atípica. A família ainda controla 100% do negócio.
Mas cada região é gerida de forma autônoma por diferentes facções da quinta
geração do clã. Os Brenninkmeyer estão entre os empresários mais reclusos
do mundo dos negócios. Não dão entrevistas, não comparecem a eventos públicos
e apenas recentemente passaram a fornecer informações sobre a empresa. A família
também está entre as mais ricas da Europa. Em 1998, a revista Forbes avaliou
sua fortuna em 4 bilhões de dólares.
No Brasil e na Argentina, a empresa tem 75 lojas e fatura mais de 1 bilhão de dólares ao ano. O ritmo anual de expansão é de cinco novas lojas. No comando da operação estão quatro integrantes da família Brenninkmeyer. Todos nasceram na Holanda, onde aprenderam o português antes de imigrar. Seguindo a tradição do clã, eles não aparecem em público e se recusam a dar entrevistas. O medo de seqüestros provocado pela fortuna familiar está por trás da discrição dos Brenninkmeyer. "Não abro mão de dirigir meu próprio carro e de andar sem seguranças dentro de um shopping center", costuma dizer um deles. Em todas as salas de trabalho da C&A brasileira há retratos de Clemens e August. (Qualquer funcionário que deixe a sala imediatamente apaga as luzes. Poupar energia é um dos reflexos da cultura de não-desperdício da empresa.) "Nossos valores vêm do passado", diz Luiz Antônio de Moraes Carvalho, vice-presidente e membro do conselho da C&A no Brasil e na Argentina. "Estamos nesse negócio para ganhar dinheiro. Acreditamos no capitalismo. Mas queremos ter resultados da maneira mais coerente e correta possível. Sempre acreditamos que o que determina o sucesso de uma empresa são suas atitudes." Aos 52 anos, Carvalho é o principal executivo da
empresa no Brasil e na Argentina. Está abaixo apenas dos acionistas da família.
Carvalho, um engenheiro de produção formado pela USP, começou sua carreira no
Citibank e na Cica. Há 22 anos foi recrutado pela C&A, que acaba de chegar
ao Brasil. Ele é uma espécie de personificação da cultura da empresa.
Apontado como um dos executivos mais bem pagos do país, Carvalho descarrega um
caminhão e trabalha como caixa se isso for necessário. Divide seu espaço de
trabalho com todos os outros diretores da empresa e almoça no mesmo refeitório
dos funcionários. Na C&A, Carvalho é tratado por todos como
"seu" Luiz Antônio. A mudança da C&A de hoje em relação à
empresa criada pelos irmãos Brenninkmeyer se traduz na forma como os valores são
vistos. Não se trata mais de altruísmo. Responsabilidade social hoje não é
mais uma questão de opção, mas de sobrevivência corporativa a longo prazo. A atitude mais visível da C&A nesse sentido é
seu trabalho junto à comunidade. Há sete anos, a empresa criou um instituto
encarregado de desenvolver atividades sociais em todas as cidades onde houvesse
lojas da rede instaladas. O foco seria a educação de crianças e adolescentes
de baixa renda e o apoio às regiões atingidas por calamidades. A cada ano o
Instituto C&A investe 4 milhões de dólares em cerca de 350 projetos
diferentes. Vá até o centro de distribuição da empresa em Barueri, na Grande
São Paulo. Duas vezes por semana, os escritórios se enchem de crianças
vestidas com saias rodadas e lenços nas mãos. São 35 meninos e meninas das
redondezas que vão fazer aula de dança com professores do Ballet Stagium, uma
das mais conceituadas escolas do país. Uma sala de balé foi montada apenas
para as aulas. Perto dali, em outra sala, um grupo de adolescentes
aprende a fazer jornal ou a pesquisar os efeitos das drogas com a ajuda da
informática. Moradores da favela paulista Monte Azul aprendem a reciclar móveis
com decoradores e artistas plásticos. Professores de escolas públicas, como a
Giulio David Leone, na Zona Sul de São Paulo, passam por cursos de reciclagem e
diretores são orientados na administração de recursos, planejamento e na
elaboração de projetos de melhoria. "Aprendemos que a escola tem de
atingir o lucro social", diz Marlene da Luz de Freitas Rodrigues, diretora
da escola. "Resultados desse tipo não são conseguidos apenas com
dinheiro. É preciso participação." Em dezembro, a associação de pais
de alunos estendeu uma faixa no pátio do colégio: "Giulio David Leone e
C&A - Uma parceria que deu certo". A verba anual para o Instituto Social está
planejada e garantida até 2002. Esse dinheiro não é administrado por
integrantes da família Brenninkmeyer ou por executivos da C&A. É um
conselho formado por funcionários e apoiado por consultores que decidem o que
fazer com o dinheiro a cada ano. "Nosso negócio é vender roupas, não
administrar escolas e creches. Cada um deve ter o seu foco, suas
prioridades", diz Carvalho. "Mas decidimos que os braços que
levantariam os projetos seriam fornecidos por nossos próprios funcionários.
Sabíamos que não seria fácil. Mas acreditamos que essa é a melhor forma de
integrar a empresa ao mundo lá fora." Recentemente, o programa de voluntariado
corporativo da C&A foi considerado um modelo mundial pelo americano Kenn
Allen, presidente da International Association for Volunteer Effort, entidade
criada para difundir esse tipo de prática em todo o mundo (veja quadro na página
77). Atualmente há quase 1 000 voluntários da empresa espalhados por 28
cidades brasileiras. Entre eles há executivos, gerentes de lojas, caixas,
costureiras. Não é raro que Sebastian, garoto-propaganda da empresa e face pública
da C&A, se envolva com os projetos. A vendedora paulista Ângela Florêncio,
de 25 anos, também é um deles. Sua experiência como voluntária começou há
três anos, quando passou a trabalhar na loja da C&A no centro de São
Paulo. "Fiquei entusiasmada quando descobri que a empresa dava apoio aos
funcionários que quisessem se dedicar a projetos comunitários", diz Ângela.
"Eu nunca havia visto nada parecido." A Ângela voluntária tem tantos compromissos com
resultados quanto a Ângela vendedora. Em média, 12 horas de sua jornada mensal
de trabalho são dedicadas à comunidade. Nem um minuto desse tempo é
descontado de seu salário no final do mês. Também não há privilégios para
aqueles que escolhem o voluntariado. O pagamento, as obrigações e a avaliação
de desempenho são iguais para todos os funcionários. "As pessoas produzem
mais e melhor quando dão o coração", diz Evandro Ferrer, diretor de
recursos humanos da empresa. "É um resultado natural." Ângela recebe treinamento constante para saber
como lidar com crianças de creches apoiadas pelo Instituto e ajudar a monitorar
a aplicação dos recursos doados pela empresa. Algumas vezes por mês, ela
deixa seu posto de trabalho especialmente para ensinar meninos e meninas a fazer
e empinar pipas ou brincar de roda. Voluntários como ela também usam o que
aprendem no dia-a-dia da empresa para melhorar a administração das entidades.
É com esse tipo de assessoria que o CCCA - Centro Comunitário da Criança e do
Adolescente, uma casa de apoio a meninos de rua do centro de São Paulo, vem se
transformando numa organização auto-sustentável. Um grupo de funcionários da
C&A passou noções de vendas, marketing e atendimento aos gerentes da
instituição. Hoje, os meninos e meninas que freqüentam o CCCA
administram um bazar e um brechó. Muitos dos adolescentes da entidade eram
pichadores. Depois de um curso promovido pelo instituto, viraram grafiteiros e
ajudaram a decorar a área de vendas da instituição. "A C&A dá
recursos financeiros e tempo para que possamos fazer esse tipo de
trabalho", diz Ângela. "Precisamos usar isso da melhor forma possível
dentro e fora da empresa. Vestimos a camisa da C&A 24 horas por dia."
Kilvia Rabelo é um dos 45 voluntários da empresa em Recife, Pernambuco. Seu
trabalho na loja é vender. Em três creches da região, é brincar com crianças
de 3 a 6 anos. "A grande vantagem é que aprendemos a trabalhar com
pessoas", diz Kilvia. "Ficamos mais humanos e isso melhora o
atendimento que damos ao cliente." É claro que isso é bom para a imagem da
companhia. Mas é bom também para seus processos internos. Peter Drucker, o
maior dos teóricos da administração moderna, defende a integração entre
empresa e comunidade como uma maneira de motivar bons profissionais e
desenvolver lideranças. Nas creches, escolas e instituições para
adolescentes, os funcionários da empresa exercitam uma habilidade básica para
o negócio da C&A: a prestação de serviços. "Esse tipo de atividade
impulsiona as pessoas e a motivação acaba sendo um subproduto de nossa
atividade social", diz Antonio Carlos Martinelli, presidente do Instituto
C&A. "O tédio e a ausência de desafios são os maiores problemas das
organizações. Funcionários que se dedicam a atividades comunitárias não
costumam sofrer desses males." Presença na comunidade que cerca a empresa é um
dos itens que compõem a responsabilidade social. Mas qualquer projeto ou
investimento, qualquer ação desse tipo será questionado se não houver coerência
corporativa. Se cada decisão tomada não levar em conta acionistas, funcionários,
fornecedores, meio ambiente. Aspectos éticos têm de ser levados em conta no
relacionamento com funcionários, ao comprar um artigo de um fornecedor, ao
escolher a embalagem de seus produtos, ao lidar com diferentes culturas ao redor
do mundo. Mas qual é o limite dessa responsabilidade? No caso da C&A, ele se estende pelas fábricas
de milhares de fornecedores espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Cerca de 10%
das roupas vendidas pela empresa no mercado brasileiro vêm do exterior,
principalmente da Ásia. Pela lógica desse novo mercado que surge, não basta
que nos quadros de sua empresa não exista uma criança trabalhando ou que seus
funcionários sejam tratados dignamente. Uma organização não pode lucrar
comprando produtos mais baratos de quem explora mão-de-obra e não respeita o
meio ambiente. Quantos consumidores brasileiros se preocupam com as condições
de trabalho dos costureiros chineses antes de comprar uma camisa? "Hoje
eles são poucos", diz Deborah Leipziger, do CEPAA, entidade internacional
que reúne organizações não governamentais. "Mas esse já é um
movimento muito forte nos Estados Unidos e na Europa e, mais cedo ou mais tarde,
vai chegar a países como o Brasil. Responsabilidade social é um movimento que
vem a reboque da globalização." Há sete anos, os executivos do ramo brasileiro da
C&A incorporaram compromissos sociais ao código de conduta dos
fornecedores. A empresa não admite o trabalho clandestino ou o emprego de crianças
menores de 15 anos. As condições de trabalho, duração da jornada, segurança
e pagamento dos impostos são fiscalizados pelos próprios diretores e gerentes
da C&A no Brasil. Essa espécie de auditoria é feita no ato da contratação
do fornecedor, em encontros periódicos ou em visitas-surpresa. "Somos
muito rígidos com relação a esse ponto", diz o vice-presidente Carvalho.
"Quem foge às normas entra na nossa lista negra." As mesmas regras
valem para fornecedores internacionais. Há três anos os ramos europeus da
C&A criaram a Socam, organização sediada em Bruxelas, na Bélgica, responsável
pela inspeção de todos os fornecedores da empresa espalhados pelo mundo. Desde
então, a Socam realizou mais de 1 000 visitas-surpresa por ano. O contrato de
80 fornecedores foi suspenso por utilizarem mão-de-obra infantil, não
cumprirem normas de segurança e higiene nos locais de trabalho ou infringirem
padrões de proteção ambiental. A Socam foi criada pela C&A num momento de
fortes pressões sociais. Nos últimos anos, organizações não governamentais
européias passaram a divulgar relatórios sobre o comportamento das maiores
empresas da região. A C&A, grande compradora de calçados e roupas vindos
da Ásia, transformou-se num alvo dos ativistas dos direitos humanos. As acusações
iam da exploração indireta de trabalho infantil e da antipatia pelos
sindicatos de trabalhadores até a demissão de funcionários judeus durante a
Segunda Guerra Mundial e a discriminação de mulheres na alta cúpula. Num
relatório publicado em maio do ano passado, a Clean Clothes Campaign (em
português, algo como Campanha das Roupas Limpas), entidade não governamental
que reúne associações de consumidores, ativistas e sindicatos, admite
progressos por parte da empresa nos últimos anos. Mas critica o fato de a
C&A não ter optado por uma auditoria independente e pela falta de transparência
da empresa com relação aos negócios. O mesmo relatório também faz críticas
à Levi Strauss, um dos modelos mundiais da responsabilidade social e seguidora
de um código de conduta operacional e para fornecedores instituído em 1992. A
Clean Clothes acusa a empresa de manter relações com fabricantes indonésios
que pagam 50 centavos de dólar por dia a seus trabalhadores e impõem uma
disciplina humilhante. Segundo a organização, funcionários que faltam - mesmo
por razões de saúde - seriam obrigados a usar faixas no estilo maoísta onde
se poderia ler: "Eu não faltarei novamente". A permanente vigilância e um nível de cobrança
cada vez maior são alguns dos grandes desafios das corporações socialmente
responsáveis. Em muitas ocasiões, são cobranças totalmente justificáveis.
Em outras, não. Em seu livro Dedique-se de Coração, Howard Schultz,
presidente e fundador da Starbucks, a mais bem-sucedida rede de cafeterias dos
Estados Unidos, faz um relato de suas experiências com a cobrança cada vez
maior de grupos de ativistas. "Quando definimos os padrões da Starbucks
como elevados, nunca previmos que seríamos criticados porque definimos padrões
elevados", diz Schultz. "Foi o que aconteceu no final de 1994, quando
uma rede de grupos ativistas da Guatemala começou uma campanha panfletária
contra nós." Desde o início da década de 90, a Starbucks apóia os
plantadores de café, com programas de saúde, higiene, recuperação de terras,
proteção ambiental e desenvolvimento rural. Mesmo diante de todas essas
iniciativas, um grupo de ativistas da Guatemala iniciou uma campanha contra a
empresa. A alegação: agricultores da região trabalhariam em condições
desumanas para receber 2 centavos de dólar por cerca de meio quilo de café,
enquanto a Starbucks cobrava até 9 dólares pela mesma quantidade do produto.
"O folheto distribuído levou as pessoas a acreditarem que esses
trabalhadores fizessem parte de nossa folha de pagamento e que a Starbucks
estava embolsando a diferença", diz Schultz. "Logo ficou claro que a
Starbucks estava sendo atacada porque temos não só uma marca bem conhecida em
nível nacional como também somos uma empresa de princípios." As cobranças feitas nesse novo mundo não dizem
respeito apenas aos plantadores de café da Guatemala, às costureiras da China
ou às crianças pobres da periferia de São Paulo. Essa política de bom
relacionamento e respeito não se sustenta se a mesma não acontecer dentro das
organizações. Se não houver coerência de valores e atitudes nos menores
detalhes e nas pequenas decisões do dia-a-dia. E é aí que surgem alguns dos
principais dilemas das empresas que querem ser socialmente responsáveis.
"Nós partilhamos com nossos funcionários ao redor do mundo aquilo que
valorizamos, e eles vão nos manter sob vigilância", disse Peter Jacobi,
presidente da Levi's, à revista Forbes, em 1997. "Uma vez feito isso, é
como se tivéssemos tirado o gênio da garrafa: não há mais volta." Voltemos um pouco no tempo. Há cerca de três
anos, a C&A foi procurada pela Wear For Cure, uma entidade de apoio aos
portadores de doenças como a Aids. A Wear For Cure buscava parceria de várias
redes de varejo para arrecadar fundos com a venda de camisetas. A renda seria
dividida em três partes iguais: uma para o fabricante, uma para o varejista e
outra para ajudar no tratamento e prevenção da doença. Camisetas de campanha
nunca fizeram parte do mix da C&A, mas - a princípio - os executivos da
rede não viram mal algum em vender o produto em suas lojas. Parecia um assunto
menor, mas a questão foi levada ao conselho. No início da discussão,
Martinelli, do Instituto C&A, levantou uma questão: - Quer dizer que agora a empresa lucra com a Aids?
Nosso negócio não é vender roupas? Por deliberação do conselho, as camisetas da Wear
For Cure foram vendidas. Mas o lucro que cabia à rede foi repassado para o Emílio
Ribas, hospital paulista especializado em doenças infecto-contagiosas. Não é sempre que se decide se a empresa ganhará
ou não dinheiro com uma campanha de combate a uma doença ou com a construção
de uma escola. Mas é no dia-a-dia de suas operações que a corporação tem de
lidar com seus clientes, com a cadeia de fornecedores e com seus funcionários.
Se ela não for tão boa dentro de casa como é fora, a pretensão de ser uma
organização socialmente responsável vai soar como piada. "Nossa cultura é baseada no exemplo",
diz Carvalho. "Tratamos nossos funcionários da maneira como gostaríamos
que eles tratassem nossos clientes. Conhecemos suas necessidades e o peso de
suas tarefas porque todos nós um dia tivemos que executá-las. Qualquer
executivo sabe que tem de descarregar caminhão se for necessário", diz
ele. "Isso é a cultura do exemplo." A carreira dos executivos da
empresa costuma ser longa. O tempo médio de casa dos gerentes é de 15 anos. A
maioria deles é formada dentro da cultura C&A. Todos os anos, cerca de 500
alunos recém-formados nas melhores faculdades do país são entrevistados por
diretores e gerentes da empresa. Os selecionados um dia serão gerentes de loja ou
de compras. Talvez cheguem a diretores da empresa ou membros do conselho. Mas
antes terão de passar por um treinamento com duração de até dois anos.
Durante esse período, vestem uniformes de vendedores e vão para trás do balcão,
descarregam caminhões, arrumam a área de vendas, dão informações a clientes
e ajudam na manutenção. Trabalho em equipe, consenso e cooperação fazem
parte do código de conduta para executivos da C&A, quatro páginas de papel
azul distribuídas a todos os que iniciam uma carreira na empresa. O código de
conduta é um espelho da cultura de austeridade corporativa. Executivos não
aceitam brindes ou convites para almoços (a menos que eles paguem a fatura) de
quem quer que seja. O diretor financeiro não pode manter sua conta pessoal no
banco que tem negócios com a companhia. A vida acadêmica é a única atividade
profissional permitida fora da C&A. Compras só podem ser acertadas dentro
dos escritórios do fornecedor ou da empresa. E as atitudes na vida familiar e
pessoal são tão importantes quanto aquelas tomadas no ambiente profissional. Há
também uma regra não escrita que deve ser seguida por todos eles: seus narizes
precisam estar paralelos ao chão. "Uma das primeiras coisas que a gente
aprende é que é preciso gostar de pessoas para trabalhar aqui", diz a
administradora de empresas Ana Carolina Arco e Flexa, de 24 anos, estagiária na
loja do Shopping Morumbi, em São Paulo. "Só assim elas vão nos respeitar
como líderes." O varejo é um dos setores de maior rotatividade de
funcionários. No Brasil, esse índice pode chegar a 80% ao ano. Na C&A, a
rotatividade média anual fica abaixo de 20% entre o pessoal das lojas. Salários
maiores? Não é dinheiro que faz a diferença nesse caso. A política da
C&A é acompanhar a média do setor em cada praça onde atua e distribuir
resultados anuais a todos os associados, como são chamados os funcionários da
empresa. (Os associados não recebem ações da companhia, mas devem partilhar
sua filosofia.) A diferença está nos detalhes. Em algumas das 65 lojas brasileiras da rede é possível
encontrar salas de leitura equipadas com computadores e Internet. Nos bastidores
de todas as unidades há um restaurante, que serve lanche e uma refeição
quente a todos os funcionários. São eles mesmos os responsáveis pela definição
do cardápio e pela contratação da empresa que prepara as refeições. A
C&A entra apenas com a verba. Em todas as unidades da rede há grupos de
comunicação. São núcleos de funcionários escolhidos por seus pares para
organizar as áreas de refeições, transportes e eventos. "Não há ninguém
que entenda mais das necessidades dos funcionários que eles mesmos", diz
Ferrer. "Por que não deixar que eles próprios decidam o que fazer?" Os 7 000 associados da empresa - do carregador de
caminhão aos diretores - sofrem avaliações periódicas de desempenho. Cada um
passa pelo crivo do superior imediato e de pelo menos mais um executivo da
empresa. Durante as avaliações, se discutem pontos fortes e fracos,
oportunidades de carreira, capacidade de trabalho em grupo, valores.
"Qualquer um tem o direito de saber onde está acertando ou errando e o que
a empresa espera dele", diz Carvalho. "Não esperamos ter funcionários
perfeitos. Esperamos ter equipes perfeitas." Há dois anos, os executivos do centro de distribuição
da C&A, em Barueri, iniciaram um programa de escolarização dos 600 funcionários
da unidade. Atualmente, metade deles vem cursando o primeiro e o segundo graus
dentro da empresa, antes ou depois do horário de trabalho. A C&A não pode
obrigar ninguém a voltar às carteiras escolares. Pode apenas incentivar que
seus funcionários façam isso. Quem estuda recebe uma refeição adicional,
transporte, freqüenta salas de aula com ar-condicionado, vídeo, TV e recebe
apoio de professoras e pedagogas contratadas pela empresa. "Queremos
pessoas abertas às mudanças", diz Jonas Cezar Laurindvicius, executivo
responsável pelo centro de distribuição. "Eles ganham e nós também."
As aulas acontecem no espaço dos escritórios. No
andar de baixo, há um mundo de roupas que giram em cabideiros gigantes. Durante
as três semanas que antecedem o Natal, o pessoal se reveza 24 horas por dia
para separar e catalogar as peças enviadas às lojas. Durante o expediente, uma
equipe de professores de educação física passa por vários setores do centro
de distribuição. Por 10 minutos, os funcionários param para fazer ginástica.
O custo mensal é de 3 dólares por pessoa. O retorno? "A auto-estima das
pessoas", diz Laurindvicius. "Desde que começamos com a ginástica,
elas estão mais satisfeitas. Garanto que não deixamos de despachar nenhuma peça
por causa desses 10 minutos." Não existe o mundo maravilhoso da C&A. Negócios
são negócios. Por definição buscam o lucro. E só sobrevivem quando ele é
alcançado. Há funcionários e clientes satisfeitos. E há os insatisfeitos. A
diferença entre uma organização melhor ou pior está, em primeiro lugar, no
volume dessas insatisfações. E depois na forma como os problemas são
encarados. A americana Levi Strauss é considerada um dos melhores lugares para
se trabalhar nos Estados Unidos. É conhecida por respeitar os direitos das
minorias raciais e sexuais, por promover a informalidade nas relações e por
ter salários e benefícios acima da média de mercado. A cada ano, a empresa
destina 20 milhões de dólares para entidades filantrópicas. Poucas marcas no
mundo têm uma imagem tão poderosa quanto a Levi's. No final de 1997, a empresa decidiu fechar 11 fábricas
nos Estados Unidos e transferir parte da produção para a China. A decisão
estava apoiada na viabilidade do negócio, na competitividade que uma empresa
deve ter se quiser sobreviver. Num processo de demissão em massa, 6 395 funcionários
perderam seus empregos. Poderia ter sido um golpe rude na imagem da Levi's.
Demissões em massa são execradas nos manuais da responsabilidade social. Mas
os executivos da empresa procuraram minimizar os traumas gerados pela decisão.
Os funcionários receberam adicionais nos salários e benefícios e passaram por
processos de treinamento e recolocação no mercado de trabalho. Em 1987, a
C&A teve seu único prejuízo no Brasil. Dois anos depois, seus executivos
decidiram reduzir o número de funcionários dos escritórios de 600 para 400.
"Optamos por não fazer uma demissão em massa", diz Carvalho.
"Suspendemos as contratações e não substituímos os funcionários que se
aposentavam ou saíam da empresa. Não fizemos promoções, não aumentamos salários.
Foi um período difícil." A C&A realiza 3 milhões de operações de
venda a cada mês. Milhares de consumidores passam por suas lojas a cada dia. São
milhares de pessoas que querem ser atendidas em suas expectativas e que desejam
o melhor serviço possível. O cliente não ficou satisfeito com o produto?
Segundo Carvalho, há alguns anos a C&A instituiu um sistema de troca
facilitada. O consumidor não precisa justificar a troca, não cumpre prazos e
ela acontece imediatamente. Qualquer funcionário pode encaminhar o processo.
"Sabemos que é muito mais barato manter um cliente leal do que conquistar
novos compradores", diz ele. Nos registros dos últimos cinco anos do
Procon de São Paulo, há 28 reclamações de consumidores contra a empresa - a
maioria diz respeito a cobranças indevidas. Desse total, 24 já foram
resolvidas. "Trabalhamos para que não exista nenhum consumidor
insatisfeito", diz Carvalho. "Ainda não conseguimos chegar lá. Mas
esse continua sendo um desafio importante." Como também existem desafios na área de proteção
ambiental. Apagar as luzes de salas vazias e vistoriar a emissão de poluentes
de fornecedores são iniciativas válidas, mas não suficientes. Há alguns
meses, os executivos da área de marketing da C&A passaram a estudar a
viabilidade do uso de materiais recicláveis em substituição ao plástico das
sacolas usadas nas lojas. "Nossa grande dificuldade é encontrar
fornecedores com qualidade e preços competitivos", diz Rubens Panelli Júnior,
diretor de marketing da C&A. Peças como meias e camisetas deixaram de ser
embaladas em plástico. Nos últimos dois anos, o uso desse material caiu 50%
nas lojas da rede. A C&A nunca conseguiu contabilizar em lucros
suas atitudes junto a clientes, fornecedores, funcionários e comunidade. Seus
executivos acham que não é possível saber qual será o retorno em vendas
provocado pelo apoio que a companhia dá à educação de crianças como
Poliana, Rodrigo e Joab e com as aulas de dança para os meninos de Barueri. Ou
quantos novos consumidores irão às lojas motivados pela preocupação que a
empresa tem com seus funcionários, com o meio ambiente e com as pessoas que
trabalham para seus fornecedores. Sabem que tudo isso - bem-feito - pode trazer
à C&A o respeito do mercado, a dedicação dos funcionários, a satisfação
dos consumidores, os lucros e a perenidade da organização. "Temos certeza
de que ganhamos muito indiretamente", diz Carvalho. "Mas mesmo que
isso não acontecesse, continuaríamos a fazer tudo o que fazemos. Porque são
nossos valores e realmente acreditamos neles." * Colaborou Jomar Morais
|
|